dimanche 10 juillet 2011

Sobre o terremoto no Haiti

As outras réplicas

EDUARDO GALEANO





Photo, Alex Castro





A tragédia de Haiti desencadeou um formidável movimento internacional de solidariedade.
Porém, segundo o autor, o terremoto também provocou outras réplicas. São, explica, tremores de hipocrisia, racismo e amnésia que nenhum sismógrafo é capaz de registrar.

Pat Robertson, teleevangelista de ampla audiência, explicou claramente este assunto do terremoto. O pastor de almas cantou a justa: as placas tectônicas não tem nada que ver. O terremoto é uma consequência do pacto que os negros haitianos fizeram com o diabo há dois séculos. Satã os liberou da França, porém Haiti se converteu em um país maldito.

Bem, Pat não está só. São muitos os que creem, ou ao menos suspeitam, que a liberdade foi o pecado que condenou o país à perpétua desgraça. Haiti não seria um país maldito se houvesse aceitado seu destino colonial.

Porém, maldito por quê? Os negros haitianos haviam humilhado o Exército de Napoleão Bonaparte, que nessa guerra perdeu dezoitos oficiais, e a França cobrou caro a expiação. Durante mais de um século, Haiti pagou a França, por haver cometido semelhante sacrilégio, uma indenização equivalente hoje em dia a quase vinte e dois mil milhões de dólares.
O novo país nasceu endividado e arruinado, arrasado pela guerra de independência que a tantos matou ou mutilou, e também arrasado pela exploração desapiedada de seu solo e de sua gente extenuada pelo trabalho escravo. A prosperidade da França havia sido a ruína do Haiti. Todo o país havia sido reduzido a uma imensa plantação de açúcar, que aniquilou os bosques e secou a terra. Os negros livres herdaram um reino sem sombra e sem água.

Nestes dias, a imprensa tem difundido resenhas históricas. Se supõe que ajudam a entender o que ocorre. Em quase todos os casos, nos contam que o Haiti foi o segundo país livre das Américas, porque havia seguido o exemplo da independência dos Estados Unidos. A verdade é que não foi o segundo. Foi o primeiro, o primeiro país deveras livre, livre da opressão colonial sim, e também livre da escravidão. E foi o primeiro, precisamente, porque não seguiu o exemplo dos Estados Unidos: Haiti foi um país sem escravos sessenta anos antes que os Estados Unidos, cuja primeira Constituição estabeleceu que um negro equivalía a três quintas partes de uma pessoa.

E Haiti nasceu, por isso, condenado à solidão. Haiti difundia, com seu exemplo único, uma peste contagiosa. Nenhum outro país reconheceu sua existência. Todos lhe deram as costas. Sequer Simón Bolívar, quando governou a Grande Colômbia, lembrou que aos haitianos devia sua glória, quando estava vencido, porque eles lhe haviam dado navios, armas e soldados, com a única condição de que libertasse os escravos.

Outra réplica do terremoto: são muitos os que creem, e não poucos o que afirmam, que toda ajuda será inútil, porque os haitianos são incapazes de governar-se a si mesmos. Levam na testa a marca africana. Estão predestinados ao caos. É a maldição negra.

Pelo mesmo motivo, os Estados Unidos não tiveram outro remédio que invadir o Haiti em 1915. Robert Lansing, secretário de Estado, explicou então que "a raça negra é incapaz de governar-se a si mesma e tem uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização".
O presidente Woodrow Wilson, prêmio Nobel da Paz, fervente admirador da Ku-Klux-Klan, assinou a ordem de invasão para restabelecer a ordem, evitar o caos e de passagem, já que estava por ali, cobrar o que Haiti devia aos bancos norte-americanos. As tropas foram para ficarem pouco tempo, porém permanceram dezenove anos.
Não puderam restabelecer a escravidão, como haviam feito no Texas e em Nicarágua, porém ao menos impuseram um regime de trabalho forçado que era bastante parecido, e enquanto durou a ocupação militar proibiram que os negros entrassem nos hotéis, restaurantes e clubes reservados aos estrangeiros. Também proibiram que o presidente do Haiti cobrasse seu salário, até que ele mudasse sua conduta e presenteasse o Banco da Nação ao City Bank.

Terra desolada, gente desesperada: Haiti tem tido uma vida ruim, quase sempre submetido às ditaduras militares. Ditadura após ditadura: para que muitos se calem e poucos mandem.
Um dos ditadores, Baby Doc Duvalier, escapou da fúria popular em janeiro de 1986. Fugiu, acompanhado por milhões de dólares, no avião militar que o presidente Ronald Reagan lhe enviou, em agradecimento pelos serviços prestados.
Tempos depois, quando o terremoto ocorreu, Baby Doc anunciou, do exílio, que ia dar ao Haiti uma parte da dinheirama que havia roubado. Foi comovedor.


Quase tanto quanto o gesto do Fundo Monetário Internacional, que decidiu emprestar ao Haiti cem milhões de dólares.

Quando as tropas se retiraram, deixaram um país bastante pior que o que haviam encontrado. Oxalá não se repita a história, agora que as tropas norte-americanas regressaram, trazidas pelo terremoto, e sobre as ruínas exercem o poder absoluto.
A experiência tem demonstrado, na América Latina e em todo o sul do mundo, que os especialistas internacionais são tão inúteis quanto os ditadores militares, talvez até mais, e resultam muito mais apresentáveis, porque matam para ajudar a suas vítimas.

No Haiti, como em muitos outros países, foram o Fundo Monetário e o Banco Mundial que pulverizaram o poder público e eliminaram os subsídios e as tarifas que de alguma maneira protegiam a produção nacional de arroz. Os camponeses que viviam de seus cultivos foram transformados em mendigos ou barqueiros, lançados à rua ou aos tubarões, e Haiti passou a importar arroz, esse sim subsidiado, esse sim protegido, dos Estados Unidos.
Graças aos bons serviços destes filantrópicos internacionais, o terremoto aniquilou um país aniquilado: sem Estado, sem instituições, sem hospitais, sem escolas.
Sem nada? Sem nada de nada?

Em 1996, o deputado alemão Winfried Wolf, que passou alguns dias no Haiti, consultou as estatísticas internacionais. Havia escutado umas mil vezes que o Haiti é um país superpovoado. Se surpreendeu ao descobrir que a Alemanha está tão superpovoada quanto o Haiti. Porém admitiu: "Sim, o Haiti está superpovoado... de artistas".
Windried passeava pelos mercados sem nunca cansar-se de tanto admirar as criações de arte popular deste país. As haitianas e os haitianos tem mãos mágicas, que reviram o lixo e do lixo retiram ferros velhos, cristais quebrados, madeiras gastas, coisas que parecem mortas, e a quem essas escultoras e escultores dão vida e alegria.

Haiti é um país jogado fora, terra depreciada, terra castigada, que agora, depois do terremotos, parece mais morta que nunca. Sobrarão mãos mágicas, capazes de ressuscitá-la?

Um dos sobreviventes, que perdeu sua mulher, seus filhos, sua casa, tudo, respondeu à pergunta de um jornalista:
"E agora? Agora choro. Todas as noites choro. Aqui, na praça onde durmo, choro. E depois me levanto e caminho. Não sei aonde. Caminho. Sigo. Busco a vida. Não me pergunte por quê".


Eduardo Galeano é escritor uruguaio.




Photo, Alex Castro



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