A parte do Rio de Janeiro que corresponde hoje aos bairros da Saúde e da Gamboa pode ser considerada a primeira periferia do Brasil. Ao longo do tempo foi sendo transferida para a região uma série de atribuições indesejáveis para a porção da cidade considerada mais nobre. Com o aumento das atividades portuárias, o carregamento de mercadorias passou do antigo cais próximo ao Largo do Paço (atual Praça XV) para a Prainha (hoje Praça Mauá). Não somente ouro e diamantes escoados de Minas Gerais, como também a carga humana trazida da África, faziam parte desse tráfico de coisas e de gente. Já no século XVIII, o mercado de escravos se estabeleceu próximo dali, na Rua do Valongo, seguido de perto pelo Cemitério dos Pretos Novos. Os chamados “usos sujos” se multiplicavam*. A prisão do Aljube foi instalada em 1733, perto do trecho onde hoje se entroncam as ruas do Acre e Leandro Martins, enquanto o Hospital da Saúde – para doenças contagiosas – tinha sua localização entre a Rua da Gamboa e o Saco do Alferes, próximo ao Cemitério dos Ingleses. Volta e meia, a Forca Pública era armada na Prainha e os condenados levados à Igreja de Santa Rita para receber as últimas consolações.
Por entre processos de marginalização e, por vezes, degradação, a região foi se transformando em lugar de pobreza, violência e morte – limite e espelho da cidade que prosperava na faixa estreita entre o Morro do Castelo e o de São Bento e cuja população abastada começava a se espalhar para as novas freguesias ao oeste e ao sul. A desigualdade entre essa e outras partes da cidade foi confirmada, no final do século XIX, pelo surgimento da primeira favela, no Morro da Providência, a poucos metros de onde antes existiu o mercado de escravos. Diante desse cenário, no início do século XX, a Saúde era o local mais temido da cidade, na perspectiva de muitos que moravam noutras partes do Rio de Janeiro. Seus “bambas”, “malandros” e “capoeiras” eram o assunto predileto das reportagens policiais. E ali, a meio caminho entre o porto e a favela, na chamada Pequena África, entre o preconceito e a resistência à dura realidade social, nasceu o samba, acalantado pelos estivadores e pelas prostitutas que frequentavam seus botequins.
Tomando essa história de exclusão como ponto de partida, a exposição Do Valongo à Favela: imaginário e periferia examina como foi sendo formado o imaginário cultural dessa periferia, por meio de sua presença na arte. A mostra cria um percurso desde as imagens antigas do lugar e das atividades ali decorridas, até a elaboração da favela como questão de interesse da arte para muito além dos limites geográficos que lhe deram origem. Hoje, as ideias de “periferia” e “periférico” são de importância vital para a arte contemporânea, colocada aqui em diálogo crítico com vestígios de um passado que vai sendo revisto e reinventado. A favela, em sua relação com a região portuária do Rio de Janeiro, tem longa história, sendo parte fundamental dos modos de memória e de vida do Brasil. Precisa de visibilidade para que o respeito, devido a todos, alcance também os que foram sempre excluídos e postos à margem.
Rafael Cardoso e Clarissa Diniz, curadores
*O termo “uso sujo” foi inaugurado pela urbanista e historiadora Nina Maria de Carvalho E. Rabha, nos anos 1980, para descrever as funções indispensáveis ao funcionamento da cidade, mas que maculam sua imagem simbólica.
Núcleos significativos
Do Valongo à Favela: imaginário e periferia ocupa integralmente o terceiro andar do MAR, reunindo ampla seleção de imagens e obras divididas em oito núcleos significativos:
Praia Formosa
Rua do Valongo
Pequena África
O Bairro Rubro
Praça Mauá
Problema Social
Fato Estético
Periferia é periferia
Rua do Valongo
Pequena África
O Bairro Rubro
Praça Mauá
Problema Social
Fato Estético
Periferia é periferia
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